Artigo - Crônica de uma faixa inesperada

Crônica de uma faixa inesperada

Gabriela Maya

Como alguns de vocês sabem (e outros não), tive o grande prazer de passar um ano estudando em uma universidade japonesa, mais especificamente a universidade de Nanzan, em Nagoya, no Japão. Sem dúvida foi uma experiência rica e proveitosa, na qual as pessoas demonstram bastante interesse. O mais curioso, porém, é que apesar de ter deixado o Brasil com um mero 3º kyu, regressei com nada menos do que um 1º dan. Este singular fenômeno causou inúmeras especulações nos círculos aikidocas do Rio de Janeiro. Haveria no Japão algum curso relâmpago (como fariam para se inscrever, e era muito caro?)? Um ano, no Japão, por acaso correspondia a... digamos, uns seis, dos nossos? E afinal, exatamente que tipo de aulas eram aquelas que eu tive com o tal professor japonês?

A verdade é que eu mesma nunca compreendi muito bem como se deu o sucedido. Com meu japonês muito elementar, eu penava para entender mesmo as explicações mais simples que o mestre Owaki dava durante as aulas. Soavam-me mais ou menos assim: "Corpo... (incompreensível) ...deste jeito... (incompreensível) ... e é assim... (incompreensível) ... então, pat!" (presumívelmente um efeito sonoro, geralmente acompanhado por um golpe enfático). Só me restava, então, imitar os outros (o que felizmente costuma funcionar bem durante um treino de aikidô).

Como vêem, há uma elevada possibilidade que eu tenha entendido tudo errado no dia em que o mestre me comunicou que eu pularia de 3º kyu para 1º dan ("Gaburiera-san... incompreensível... tempo... incompreensível... 3º kyu... incompreensível... shodan!"). Vai ver que na verdade estava me aconselhando a desistir do aikidô: se depois de tanto tempo nem técnica de 3º kyu eu tinha, imagine achar que eu poderia um dia ser shodan! E aquele rolo de papel cheio de kanji que recebi provavelmente nada mais era do que um decreto proibindo qualquer outro instrutor no Japão de se empenhar em meu ensino, pois seria uma perda de tempo e um crime contra a nação.

Logicamente eu entendia o básico, como por exemplo uma sequência de sílabas que Owaki-sensei falava com bastante frequência, assim: "No, no, no, no, no!" Parece-me que alguns mestres brasileiros também usam esta exclamação (que por alguma razão me soa bastante negativa), o que causa conjecturas sobre sua orígem: será de fato um anglicismo ou terá algum significado diferente em japonês? De qualquer modo, as circunstâncias em que era dito me fazem ter bastante certeza de que o ouvinte de tal som na maioria das vezes está fazendo besteira (o que infelizmente parece me acontecer com frequência embaraçosa, tanto aqui quanto no Japão).

Owaki-sensei era mestre de judô, kendô e aikidô, tendo deixado de lado o primeiro por já estar na casa dos setenta. Apesar desta admissão de idade avançada, era muito bem conservado e alegava caminhar um grande número (que me escapa da memória) de quilômetros por dia. As outras duas artes marciais continuava a ensinar com grande disposição, num dojô perto da universidade de Nanzan. Como a maioria dos japoneses que conheci, se entusiasmou muito com a presença de uma gaijin no dojô. Os japoneses parecem nos achar espantosos (como a velhinha que de tamanho susto caiu da bicicleta e foi parar bem no meio de um arrozal quando se deparou com um colega meu da universidade em plena paisagem rural). Logo, fui objeto de grande curiosidade no dojô, inclusive aparecendo em varios jornais e até num programa de auditório na TV local com direito a perguntas de múltipla escolha do estilo Você Decide. (O teor das perguntas continuam sendo um mistério para mim até hoje). Isto tudo, é claro, rendeu bastante publicidade ao dojô, como me confessou Owaki-sensei um dia com entusiasmo tocante: "Novos alunos estão vindo por causa do artigo no jornal!" (Talvez tenha sido por isso que o mestre decidiu permitir que eu ficasse lá por um tempo mesmo depois do tal decreto).

Porém, mal sabiam eles, o dojô e suas práticas eram também para mim objetos de grande curiosidade. O esquema de treino, por exemplo, distinguia-se do nosso em várias minúcias. Para começar, treinava-se a aula inteira com um mesmo parceiro, escolhido pelo mestre, de acordo com um critério misterioso que enfureceria aos politicamente corretos: os homens treinavam com os homens e as mulheres com as mulheres - com algumas raras excessões - e os mais avançados geralmente treinavam entre si, enquanto os iniciantes viravam-se um com o outro. Após o aquecimento (que incluía uma agradável auto-massagem) começava-se sempre com os mesmos movimentos: katate-dori shiho-nage, kotegaeshi e kokyu, seguindo depois para técnicas novas. No inverno, o mestre e as mulheres podiam usar uma deliciosa meia-mocasin chamada tabi, que nos fazia deslizar no tatami como verdadeiras tartarugas ninjas, além de nos deixar com pena dos coitados dos homens que tinham que sentir frio nos pés (e olha que o frio lá é muito pior do que o de Araras em junho). Outras peculiaridades: não se podia colocar o calcanhar no chão ao fazer kaiten, e, para o meu grande espanto, não se podia fazer barulho nos rolamentos.

Assim que Owaki-sensei percebeu que eu tinha o hábito de fazer ukemi com uma estrondosa pancada (num dojô outrora calmo e silencioso), chamou a mim e um faixa-preta novo, o Iwata-san. "Vamos lá para baixo," disse. (Ou melhor: "... incompreensível ..." Eu os segui escada abaixo). O andar de baixo era onde se davam as aulas de kendô. O chão era de madeira dura, nada de tatami.

"Iwata-san," disse o mestre."Mae-ukemi." (Isto eu entendi). O coitado do Iwata-san não hesitou. Cobriu o chão de rolamentos silenciosos, de ponta a ponta, e voltou com uma careta disfarçada de quem teria preferido um tatamizinho.

"Está vendo?" disse o mestre. "Se bater, braço quebra."

Lá fui eu pro treino para praticar o rolamento por cima insonoro, o que eventualmente mostrou-se praticável, especialmente com a ajuda de minha eterna companheira de treino, a Satomi-san. Como não sei qual critério era usado para fazer os pares de treino, não tenho idéia de por que Satomi e eu sempre treinávamos juntas. Talvez tenha sido por uma propensão em comum para cochichos e risinhos durante a aula, numa linguagem que misturava japonês, mímica e algumas palavras em inglês, com o seguinte conteúdo essencial: "Como é que faz isto, hein?" "Ah, eu não sei não." (Ou melhor, talvez tenha sida esta a razão pela qual eu mudei de parceiro depois de algum tempo.) Mais tarde, quando estávamos praticando para uma apresentação, tornei-me parceira do Iwata-san, e depois disto da Fukuda-san, que incidentalmente era minha professora de japonês na universidade - ou seja, minha superior na sala de aula mas minha koohai (inferior) no dojô. Uma situação hierárquica cheia de sutilezas, a maioria das quais eu provavelmente massacrei, em bom estilo ocidental. Ainda bem que gaijin é perdoado por tudo.

De grande interesse era também a aula das crianças. Infinitamente mais populosa e bagunçada do que a nossa, lembrava um playground. O mestre era muito mais severo com as crianças do que conosco, surtindo, porém muito menos efeito. De vez em quando dava umas pauladas nos ombros dos perpetradores com uma vara de bambú, acompanhados por rosnados ferozes. Esse comportamento causava risinhos e cochichos, inclusive da parte dos punidos, que cinco minutos depois já haviam esquecido a tal vara e estavam novamente a todo vapor.

A única maneira de escapar da aula por um momento era pedir para ir ao banheiro no andar de baixo, coisa que os meninos (não me lembro de ter visto meninas na aula) faziam, em grupos de três ou quatro, com uma frequência que seria alarmante se a necessidade fosse real. Owaki-sensei dava sua permissão, grunhindo: "E não esqueçam de lavar as mãos!" Invariavelmente esqueciam, e eram mandados de volta, o que parecia lhes agradar muitíssimo, embora aparentassem igual satisfação em retornar, minutos depois, à bagunça organizada da aula.

Os alunos adultos também merecem menção. Um deles aparecia todas as noites no dojo carregando um objeto inegavelmente fálico em sua bolsa, envolvido num pano. Não, não era katana; era um enorme pão francês, o qual, alegava, lhe servia de jantar, com um bom copo de vinho. Recebeu, é claro, o apelido "Pão". Como voltava no mesmo trem que eu, tinha oportunidade de praticar comigo seu inglês completamente incompreensível (juro que eu entendia japonês melhor do que o inglês dele). Além disso, ele não entendia o meu inglês de jeito nenhum, me levando a desistir e passar a me comunicar com ele em japonês mesmo. Nossos co-passageiros no mínimo devem ter pensado que fazíamos parte de alguma câmera indiscreta, e faziam o máximo para fingirem que não estavam notando o estranho par que fazíamos. Um japonês sorridente, com um pão enorme saindo da bolsa, falando inglês com uma estrangeira que respondia impacientemente (em japonês): "Como? Não entendi? Fale um pouco mais devagar, por favor!"

"Momiji" (folhas vermelhas), cujo nome verdadeiro me escapa no momento, era um rapaz de cabelos avermelhados. Certa vez durante um treino de outono, quando as folhas dos bordos ficavam cor de vinho, eu (querendo puxar assunto) apontei para os seus cachos e comentei: "Igual aos momiji, né?" O rapaz me olhou com uma expressão de quem acha que definitivamente seu cabelo não tem nada em comum com momiji nenhum. "Ah," disse com um sorriso educado. Esta foi uma das minhas tentativas de fazer amizades que falhou completamente. Além de não trocar outra palavra comigo, o rapaz não apareceu mais para treinar no segundo semestre. Soube que tinha quebrado o braço fazendo ski-board (mas eu não tenho nada a ver com isso).

Chieko era um amor de moça com quem fiz grande amizade. Até me convidou à sua casa para comer um sushi bagunçado do estilo make-your-own, e compartilhava comigo o gosto pela literatura - se é que eu entendi certo... Convidou-me também para a casa de seus vizinhos, com o propósito (explicou) de me mostrar a antiga tradição da cerimônia do chá, na qual a avó da casa era especialista. Quando cheguei lá tive a impressão de que na verdade o propósito era mostrar aos vizinhos a exótica brasileira que fazia aikidô. Todos ficaram devidamente assombrados com a minha incrível capacidade de aprendizagem quando a avó me ensinou os primeiros movimentos da cerimônia do chá (vale mencionar que para os japoneses ficarem impressionados, basta um gaijin dizer "Bom dia" em japonês).

Havia também o Iwata-san, que diziam estar apaixonado por mim, e que me levou para passear algumas vezes sem qualquer menção ao fato (exceto uma vez quando estava bêbado - mas não vamos entrar em detalhes), a Itoo-san, uma moça muito simpática que insiste até hoje em me mandar cartas com fotos da campeã japonesa de patinação no gelo, e muitos outros com nomes parecidos que eu já esqueci.

No final da aula os alunos continuavam incrivelmente limpos e asseados, como se estivessem saindo de uma reunião de negócios num salão de ar condicionado. Cumprimentavam-se educadamente, dizendo uns aos outros:"Otsukaresama desita." (Foi honoravelmente cansativo.) Nada de cabelos despenteados, suor escorrendo, kimonos abertos, respirações bufantes. Só o meu penteado era que, por alguma razão, estava sempre desabando. Além disto, meu hakama era curto demais, fato ao qual fui discretamente alertada quando o mestre me presenteou com um dos seus, especialmente para uma apresentação. "Tyotto mijikai, ne," ("Um pouco curto, né.") me disse, apontando para as pernas de meu kimono, que ultrapassavam o comprimento do hakama.

Lá pelas tantas, Owaki-sensei me convidou para ir olhar as cerejeiras. Calma, já vou explicar o que significa isto: trata-se de uma tradição japonesa que é praticada na semana da primavera em que florescem as cerejeiras. As flores da cerejeira são lindas, abundantes e fugazes. Como sua duração é curtíssima, deve-se apreciá-las enquanto possível, e nestes poucos dias os japoneses saem às ruas, fazem piquenique nos parques, comem um docinho branco, verde e rosa muito gostoso chamado hanami-dango, e admiram as cerejeiras. Owaki-sensei tinha o privilégio de morar justamente na "Hanami-dori", ou seja, "rua de ver flores", que, nessa época, parecia envolta numa nuvem de pétalas brancas. Foi por ali que me convidou para passear, junto com ele e a esposa, é claro, e com direito a chazinho no apartamento, depois.

Não sei se é o costume de senseis japoneses convidarem seus alunos e alunas para este tipo de programa, mas o fato é que senti-me muito honrada e até nutri por um momento a esperança de que meu mestre e meus companheiros de treino me considerassem, além de uma gaijin (sempre fator de prestígio) que ajudou (involuntariamente) a trazer publicidade ao dojô, uma pessoa querida com quem gostavam de conviver (apesar dela entender tudo errado, não gostar de cerveja, usar um hakama muito curto e ainda por cima não saber manusear um microfone de karaokê).

Quanto à faixa preta que deu título a esta crônica, cheguei à conclusão de que simplesmente os critérios lá são diferentes daqui. A única coisa que não muda é a seguinte: mestre não se questiona; se obedece. E especialmente quando se trata de receber uma faixa-preta.