A Psicossociologia e as Artes Marciais
A Psicossociologia e as Artes Marciais
Patrick Delmas (*)
O Sociólogo e o Combatente
A implantação maciça das Artes Marciais Orientais nas sociedades ocidentais tem conduzido a psico-sociologia a colocar, nestes últimos anos, a questão do status destas práticas dentro da dinâmica atual. O porque das Artes Marcias? Em resposta, artigos e teses que analisaram o fenômeno salientam, em geral, os seguintes aspectos:
1. Respondendo a violência das sociedades industrializadas, as Artes Marciais, otimizando a descarga agressiva, têm um papel de derivativo, de válvula de escape individual e coletiva.
Dentro da dinêmica social, as Artes Marciais são então reguladoras de tensão: nos locais onde se pratica, as cargas agressivas adquiridas em outros lugares se exprimem e se desarmam em favor do treinamento. Sendo assim, elas inibem as forças atuantes no terreno das lutas políticas e sociais.
2. Hoje em dia onde os perigos sociais são menos de agressão corpo a corpo que de agressões psicológicas (assédio do universo sonoro, pressões do trabalho, insegurança existencial em época de crise, etc.), o papel primeiro das Artes Marciais cai em desuso. Em outras palavras, aquele que treina para combater se engana de inimigo: ele adia sua resposta às agressões sociais para um outro tempo (o tempo do treinamento) e a desloca para um outro terreno. O combatente de Artes Marciais se esgota então num duelo metafórico; ele combate, através do seu adversário, inimigos ausentes.
3. Examinando com mais precisão o aspecto relacional nas Artes Marciais, os psicólogos se fixam nas motivações dos praticantes. "Eu treino para o combate porque eu me sinto inseguro", é em geral a motivação inicial, vista por alguns como um reflexo paranóico (esta hipótese situa-se no lado direito da análise sociológica).
A um nível mais profundo e utilizando-se conceitos da psicanálise, as Artes Marciais podem ser vistas como ritualizações sado-masoquistas. Neste jogo, onde somos na verdade os dois, o "tome essa" se alterna com o "faça-me mal".
Apesar do interesse desses esclarecimentos que tentam mostrar que na sociedade, como de resto, nada se perde, nada se cria e que um fato social tem sempre uma razão de ser dentro de uma dinâmica de funções, vários aspectos dessas análises me parecem criticáveis.
Na realidade, a análise psico-social tem a tendência de tomar as Artes Marciais "ao pé da letra", de só ver a marcialidade (a representação dos combatentes, enfrentamento corpo-a-corpo) e a adotar, finalmente, a perspectiva superficial do iniciante. A meu ver, portanto, as Artes Marciais, se vistas como sendo nada mais do que esportes, não podem ser isoladas do fenômeno esportivo em geral. Um exame aprofundado dos esportes que não se declaram "marciais" (futebol, rugby, tênis,...) revela um conteído pleno de simbolismos guerreiros nos quais encontramos desordenadamente: luta, dominação, vencedor/vencido, vitória/derrota, etc. A atitude dos praticantes é altamente agressiva, competitiva, mesmo se a disputa é mediada por uma bola ou por um alvo.
O Avanço do Projeto
Em princípio, as Artes Marciais orientais (japonesas, chinesas) se distinguem dos esportes, se bem que algumas dentre elas (judô, karatê) invadiram este campo de atividade. Não havia no espírito dos criadores dessas dsiciplinas o objetivo explícito de brilhar nas competições internacionais, mas sim o deseja de criar métodos de treinamento físico, psíquico e moral. Na base do projeto marcial dos criadores contemporâneos encontra-se a renúncia a marcialidade, a seu uso. É a idéia do avanço do projeto através de sua própria negação, através de sua perversão. Quer isto dizer que as Artes Marciais (notadamente as japonesas) foram divulgadas com um veículo ideológico preciso. Resultante, por um lado, do contexto socio-histórico, e mesmo político, dos país de origem, e por outro lado, do contexto religioso (o xintoísmo principalmente, o budismo), a ideologia das Artes Marciais se articula ao redor de um projeto pacifista. Não agressão, domínio de si mesmo, respeito aos outros, as coisas permaneceriam neste nível não fossem as exigências do esporte de competição modificando essa orientação.
O Aikido, a tradição e o prazer
A título de exemplo, eu gostaria de distinguir o Aikido das outras Artes Marciais. É, na realidade, a única prática que existe até hoje afastada dos esportes de competição e que conserva uma ligação real com a tradição japonesa.
Para se avaliar a importância das proposições do Aikido, o ponto de vista psico-sociológico é inadequado. Na verdade, respondendo mal a idéia que se faz dos esportes de combate, não se engajando em competições, riscando de seus objetivos a idéia da supremacia sobre o adversário, o Aikido exige do praticante a vitória contra si mesmo. O Aikido é, antes de mais nada, um somatório de proposições em ruptura com o universo cultural ocidental e, de uma certa forma, com o universo cultural japones de hoje em dia.
O Aikido é sem dúvida, acima de tudo, um método de recentralização psico-somática (perto talvez das Iogas do corpo, com menos rigidez e hierarquismo), no qual o treino visa o aperfeiçoamento da expansão e da disponibilidade física, psicológica e moral. Sendo assim, a atitude exigida durante o treino é menos de esforço do que de abandono. Segundo os entendidos, trata-se menos de acumular forças do que de redescobrir uma disponibilidade de ação.
No discurso do Aikido está contida uma idéia de que aquele que pratica participa de um ritual místico, um mito das origens. Esta idéia se organiza ao redor dos seguintes pontos: "centralize-se - pela primeira vez - com todo o seu coração". Que isto dizer que a prática propõe então refazer, através do exercício físico, o trajeto do ato criador. Ritual de renovação, de recomeço, presente a todas as problemáticas tradicionais. O Aikido é, portanto, uma arte no sentido pleno do termo, visto que ele propõe uma modificação do indivíduo através da aprendizagem de movimentos (o alfabeto) dentro de uma intenção dinêmica individual (a escritura). A repetição de mesmos movimentos é uma marca registrada da vida social japonesa, onde até no bilhar eletrônico, o Pachinko, o mesmo movimento de pulso é reiniciado milhões de vezes. No Aikido, esta repetição não tem somente uma visão perfeccionista: poder refazer é dar uma chance àquele que pratica de fazer de uma maneira nova, de se situar a cada vez diferentemente fisicamente, psiquicamente, moralmente e emocionalmente sobre a base de um mesmo movimento.
Se dentro da ética esportiva a satisfação é mediada pelo acesso a vitória, no Aikido busca-se o prazer imediato. Esta noção de prazer, estranha as análises psico-sociológicas das Artes Marciais, longe de ser um prazer perverso, é uma constante do treino de Aikido. Aí está porque a minha pergunta: "qual o objetivo da prática?", um mestre japonês respondeu com humor: "o objetivo da prática é a prática". Prazer sensual da relação, de um certo diálogo com o parceiro, prazer sensual do próprio movimento, o que um outro mestre caracterizou como tendo talvez "um bom odor".
A importação de símbolos, o Aikido e nós
O dojo é um lugar de símbolos, um "mundo" dentro do mundo onde o "sentido" está sempre presente. O Aikido mantém ainda no essencial a atmosfera e a ideologia das velhas escolas japonesas de Artes Marciais. A idéia de vida em sociedade, do homem em relação ao seu semelhante, em relação ao Cosmos, está presente durante a prática. Desta tradição, eficaz em sua época, o que podemos aprender hoje em dia? Mesmo no Japão, estas práticas e sua filosofia resistem mal às mudanças sociais. A maioria das noções psico-filosóficas do Aikido são ininteligíveis para o japonês médio, simplesmente porque o seu cotidiano vive de outras necessidades. E quanto a nós? Há algum tempo, Alan Watts colocou estas mesmas questões a respeito do Ioga: é pssível importar para o mundo ocidental do século 20 as idéias e as práticas elaboradas na alta idade média da Índia, como se estivéssemos importando saquinhos de chá?
O mundo ocidental está em crise e seus valores iniciam um retorno radical. Um meio de renovação consiste em procurar nos modos de vida tradicionais modelos para a sociedade de amanhã. Ao mesmo tempo, o corpo é redescoberto e os intelectuais flertam com as velhas filosofias orientais ... impõe-se um reencontro com o Aikido.
(*) Patrick Delam é filósofo, prof. da Universidade de Villetaneuse, especialista em tradições orientais.
Fonte: extraído do livro "Aikido Fondamental", de Christian Tissier, Ed. Sirep.
Tradução: Bento F. Guimarães